Nosso último dia no Alto Douro tinha uma programação extensa. Logo pela manhã visitar a Quinta das Carvalhas. Após o almoço, nos deslocaríamos até Santa Marta do Penaguião para conhecer a Quinta das Gaivosas.
 
O agendamento destes passeios começou a ser feito com grande antecedência. Alguns amigos que residem em Portugal ofereceram as sugestões e fomos tentando conseguir que nos recebessem. Algumas quintas têm estrutura de enoturismo e nos aceitaram de braços abertos. Outras nos acolheram devido ao conhecimento de nosso trabalho e através de contatos pessoais em eventos de degustação. Poucas foram as que nem se dignaram a responder nossa solicitação.
 
A Quinta das Carvalhas é uma espécie de símbolo do Alto Douro e a joia da coroa da Real Companhia Velha, sua proprietária. Qualquer cartão postal de lá vai mostrar imagens de sua principal colina, com a Casa Redonda no cume, o ponto mais alto da região com vista de 360º.
Na troca de mensagens, ficou acertado que faríamos uma visita “vintage”, assim descrita pelo signatário, Álvaro Martinho:
 
“Esta visita teria uma duração variável de 1h30 a 2 horas. É uma visita acompanhada onde terá uma explicação detalhada de todo o cenário vitícola: vinha, plantas, o clima, as castas, a história e a vida das pessoas!!! No final poderá desfrutar de uma prova com 3 vinhos (2 douro DOC e um Porto). O custo associado a esta visita é de 20€ pax. Poderemos considerar esta visita… uma experiência no Douro!!! Recomendamos”.
 
Interessante notar que, com base em nosso conhecimento de outras viagens similares, formamos uma imagem do que poderia acontecer nesta visita, inclusive de quem seria o Sr. Álvaro que gentilmente respondia nossas mensagens, inclusive com outras sugestões de passeios e almoços. Não podíamos estar mais enganados, o que foi ótimo.
 
No dia e horário agendado embarcamos no veículo da Quinta para nos transportarem até lá, um percurso que poderia ser feito a pé, bastando atravessar a ponte sobre o Rio Douro, coisa de 3 ou 4 minutos, em frente ao nosso hotel. Conhecemos o nosso anfitrião, Álvaro, que se revelou um verdadeiro “one man show” (fomos descobrindo estas facetas ao longo do passeio): Guia de Turismo; Engenheiro Agrônomo; Paisagista; Gestor da Quinta responsável por toda a viticultura (120 ha); proprietário de uma vinícola na Cumieira de Santa Marta do Penaguião e Músico, com uma banda folclórica chamada Rama de Oliveira. Como se isto tudo não bastasse, aos 42 anos, casado (sua esposa canta na banda), pai de 3 filhos, é um apaixonado pela vida e por tudo que faz.
À medida que nos conhecíamos, ele comentava um pouco sobre sua vida, que sempre girou em torno dos vinhos (seus pais eram viticultores). Nasceu na aldeia de Covas do Douro, que fica a cerca de 5 km de distância do Pinhão. Tinha 13 anos quando visitou uma cidade grande pela primeira vez, Peso da Régua, o que lhe deixou deslumbrado: “Andei dois dias de elevador”!
 
Quando ingressou na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), para estudar Agronomia, compreendeu o valor da sua infância peculiar. Recebera outro tipo de cultura, única, que usava magistralmente para se destacar no seu grupo. Segundo suas palavras:
 
“Não sabia muitas coisas, mas distinguia o chilrear dos pássaros todos ou a cor dos ovos dos Melros, coisas que ninguém mais sabia”.
A visita transcorreu dentro deste clima (faço um aparte: aprendi, nestas duas horas com ele, muito mais do que já sabia, foi a melhor aula sobre a importância do trinômio solo, clima e tempo). Desde 2001 implantou o conceito de quinta produtiva de charme, transformando lugares, por exemplo, como a oficina de manutenção, antigamente banhada em óleo e graxa, num local cercado de agradáveis jardins.
 
A Quinta é literalmente uma joia e Álvaro acredita que mantê-la assim e dar as melhores condições de trabalho aos lavradores vai refletir na qualidade final dos produtos. Passou-nos a impressão que sabe nome e sobrenome de tudo que ali está plantado. As plantas são suas cúmplices, é capaz de fazer de uma simples erva daninha, tema de conversa para um dia, sem que isto seja um assunto aborrecido. Talvez a mais importante lição nisto tudo tenha sido nos fazer compreender a importância da dimensão de um terceiro fator que se junta ao binômio Solo (x) e Clima (y), sempre mencionados em qualquer compêndio de enologia: no Douro compreendem e dominam o Tempo (z), com grande sabedoria. O representam como o terceiro eixo de um gráfico imaginário:
Apresentou e explicou o conceito de “Vinhas Velhas”, algo que só existe lá. Reparem na foto a seguir.
Sem sair do lugar, nosso anfitrião girou o corpo e colheu 4 ou 5 folhas das parreiras ao seu redor. É desta forma que se identificam as videiras, comparando o formato das folhas. Resultado: 4 ou 5 espécies diferentes, podendo haver castas brancas entre elas. Na época em que foram plantadas eram “uvas que fermentadas se transformavam em vinho”. Este era o critério usado pelos antepassados. Hoje já estão fazendo o mapeamento genético para descobrir quais são estas castas, numa tentativa de preservar as características e a história destas vinhas. Se possível, reproduzir estes vinhedos aplicando avançadas técnicas de genética. Novamente, modernidade e tradição.
 
No dia da visita estavam replantando uma parcela de um vinhedo. Álvaro ressalta que para alcançar o mesmo nível de qualidade das outras parcelas terão que esperar 50, 60 ou mais anos. Ele, provavelmente, não vai provar vinhos oriundos desta nova área e não está nem um pouco preocupado com isto. Simplesmente “não me importa”! Está é a maneira de controlar corretamente o fator tempo, o duriense sabe esperar, tem paciência, o ritmo de vida aqui é outro, “nós não sabemos fazer outra coisa que não seja cuidar desta nossa biodiversidade que passa por milhares de tipos de ervas, arbustos, oliveiras, cítricos, sobreiros e parreiras”. São centenas de cheiros e cores e sabores que brotam a partir de um solo xistoso que para os olhos de um leigo não tem condições de gerar nada.
 
“As vinhas vivem, coabitam, são felizes aqui. Não querem dar vinho, querem amadurecer, dar sementes, prolongar a espécie”.
 
Emocionante tudo isto, temos que concordar com Álvaro: “Isto só existe aqui”!
A degustação que encerraria esta deliciosa visita foi de alto nível, com 3 excelentes vinhos:
 
Carvalhas Branco 2011 – elaborado com as castas Viosinho, Rabigato e Códega. As uvas são prensadas em prensa pneumática. A fermentação inicia-se em cubas de inox com controle de temperatura e termina em barricas novas de carvalho Francês. Segue-se um estágio de 8 meses nas mesmas barricas sobre borras finas.
 
Um branco limpo, claro, de brilhante cor citrina. No olfato apresenta aromas com notas de fruta com nuances de baunilha e tosta, provenientes do estágio em madeira. Embora encorpado no paladar, provoca uma sensação de leveza devido à sua frescura de sabores e acidez viva. Boa persistência. É um vinho altamente gastronômico que pode ser apreciado enquanto jovem, mas que pode surpreender após alguns anos em garrafa.
 
Carvalhas Tinto Vinhas Velhas – este foi um dos destaques desta degustação. Um corte com mais de 20 castas diferentes (Vinhas Velhas) fermentado em lagares (tanques abertos) seguido de um estágio de 18 meses em barricas de carvalho francês. Muito aromático onde se destacam notas de frutas vermelhas e negras aliadas à nuances de ervas e especiarias, bem harmonizadas com a madeira de carvalho através de sutis notas de baunilha. Taninos firmes e muito redondos, com sabores realçados por uma equilibrada acidez que torna a prova longa e persistente o fazem um vinho potente e elegante.
Royal Oporto Tawny 40 anos – este foi um capítulo à parte com sua linda garrafa lapidada. Esta é uma das marcas mais antigas de Vinhos do Porto. Uma bebida muito especial de grande intensidade aromática com notas de baunilha, especiarias e frutos secos. Potente e aveludado, enchendo o palato de sabores intensos, com um final muito longo. Uma verdadeira homenagem ao Vinho do Porto.
Tecnicamente, a visita terminaria após esta degustação, mas não foi bem assim. Quando descobrimos a faceta musical de nosso anfitrião, ficamos naturalmente curiosos e perguntamos se haveria alguma maneira de escutar o som do seu grupo musical. Não havia nenhuma apresentação programada o que gerou um convite informal: “só se vocês forem até o meu armazém, que fica sob minha residência”.
 
Nem em sonhos poderíamos imaginar o que aconteceria no final deste dia, logo depois da visita à Quinta da Gaivosa, localizada muito perto do “armazém” de Álvaro Martinho. Mas este episódio, só na próxima coluna.
 
Não há palavras suficientes para descrever o espetáculo que foi esta visita guiada por este novo amigo. Esperamos poder repetir esta incrível experiência o mais breve possível.
 
Dica da Semana:  para não ficarmos num eterna repetição, como no Bolero de Ravel, sugerindo os vinhos acima, vamos indicar um da vizinha região do Minho.
 
Alvarinho Soalheiro
Sempre nas listas dos melhores Alvarinhos de Portugal segundo a imprensa especializada, é proveniente da subrregião de Melgaço que produz os melhores vinhos verdes.
 Leve, frutado e refrescante, com ótima acidez. Delicioso e cheio de charme é mais encorpado e complexo do que os outros vinhos verdes.
 Pode ser armazenado nas condições ideais por 5 até 10 anos
 Combinações: Peixes, carnes brancas, frutos do mar, ostras e mariscos, queijos.