O mundo do vinho é cheio de contrastes e contradições. Se, por um lado, tem um legado histórico que vem de tempos imemoriais, por outro, se choca com a modernidade e as tecnologias disponíveis para cada nova geração de produtores e consumidores. Não estamos falando só de técnicas de manejo dos vinhedos ou de elaboração de vinhos: atualmente é quase possível fazer uma grande vinho a partir de pedras, em vez de uvas, numa analogia direta à famosa lenda da Sopa de Pedra.
Tampouco podemos nos esquecer da enorme evolução dos meios de comunicação e o seu impacto em nossas vidas. Um dos sinais mais evidentes é o grande número de especialistas que se dedicam a avaliar novos vinhos, diariamente: uma quantidade estonteante! Já existem sites que se dedicam exclusivamente a esta faceta. Este é um deles: Tasting Book (em inglês)
Isto tudo trouxe, para o consumidor mais conectado, uma maior facilidade. Escolher entre bons e maus vinhos se resume a fazer uma pesquisa simples num site de busca de sua preferência.
Mais coisas mudam neste novo processo. Chamo a atenção para uma das controvérsias mais curiosas, a menção das safras. Antigamente, era a chave para o sucesso ou fracasso na escolha de uma garrafa – prefiram esta em vez daquela…
Já não nos preocupamos tanto com isso, os vinhos modernos são mais homogêneos ano a ano.
Outra característica que começa a ser questionada duramente por grandes produtores são as Denominações de Origem, nas suas mais diversas nuances. Produtores de renome na França, como Cheval Blanc, Angelus e Ausone, abandonaram a denominação St. Emilon, uma das mais importantes de Bordeaux. Na espanhola Rioja Alavesa, algumas grandes vinícolas optaram por seguir outro caminho, deixando de lado as rigorosas exigências às quais são submetidos pelos órgão normativos, que determinam desde o tipo de castas que podem ser vinificadas e podem, literalmente, proibir o emprego de métodos de vinificação mais ousados. Tudo vai depender dos interesses de um sempre obscuro “comitê normativo”.
Os motivos para este comportamento inesperado dos produtores são fáceis de entender: decorrem de novas tecnologias disponíveis, além de uma certa implicância com uma excessiva burocracia que, segundo eles, os impedem de fazer vinhos mais criativos. No fundo, estão se rebelando contra uma longa ditadura que, acreditem, foi imposta por quem nunca produziu vinho de verdade. Napoleão III e Marquês de Pombal são dois deles…
Outro exemplo recente vem da Itália e os deliciosos Super Toscanos, grandes vinhos que eram comercializados como Vino di Tavola e não como Chianti. Tudo por conta da adição de uvas não italianas na elaboração. Acabaram por mudar a norma de produção, principalmente por já existirem alguns precedentes, por exemplo, quando obrigaram incluir, no tradicional corte, a casta Trebbiano, branca, por razões econômicas!
O pano de fundo disto tudo tem mais razões comerciais do que qualquer outra coisa. Vinhos famosos e caros são para poucos, muito poucos na verdade e, quase sempre, acabam como troféus a serem exibidos e nunca degustados.
Uma das regras não escritas do bom enófilo é estabelecer um limite de gasto por garrafa. Um valor aceito por muitos equivale a US$ 100.00 (cem dólares). Existem milhares de rótulos nesta faixa e na sua maioria são produtos com ótima relação custo x benefício. Ultrapassar este limite é correr o risco de ter uma garrafa tão especial que nunca chegará o “esperado” momento certo de sacar a rolha e provar. E o ousado investimento pode virar vinagre…
A nova geração de consumidores, grupo que é o atual alvo principal dos produtores para manter este mercado com um bom desempenho, já apontou claramente que prefere vinhos do segmento bom e barato e, se possível, orgânicos, naturais, biodinâmicos e assemelhados. Trocam, sem pestanejar, um Champagne por um Pet-Nat ou um Piquette, que é o resultado de uma nova vinificação feita em cima dos bagaços. (pouco comum por aqui)
Para quem se dedica a estudar e pesquisar os diversos rumos que o mundo do vinho nos oferece, a mais nova tendência é uma forte convergência de estilos e formas de comercialização entre produtores do velho e do novo mundo. Paulatinamente se abandonam as grandes classificações, substituídas por regionalizações minúsculas que, por sua vez, representam uma tipicidade muito específica, inspirada no modelo dos vinhos do novo mundo, onde a casta e o terroir passaram a ter uma maior representatividade.
Para o consumidor final fica ressaltado que o mais importante são vinhos feitos com responsabilidade ambiental, não tóxicos e sem defeitos. Passamos a degustar o que queremos e não o desejo dos produtores.
O último e talvez melhor efeito colateral será o esvaziamento dos órgãos normativos da produção vinícola, de cada país, geralmente administrado por pessoas incompetentes e que não são capazes de compreender as nuances mais sofisticadas deste mercado.
Vide o exemplo brasileiro. Com o aumento do consumo nestes últimos tempos, o segmento que mais cresceu foi o das vinícolas boutique, com produções pequenas e dedicadas, muito trabalho e alta qualidade.
Saúde e bons vinhos!
Foto de abertura:
“Napa Valley wine map” por aisforayla está licenciada sob CC BY-NC 2.0
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