A jornada começou cedo, às 8:30 já estávamos a bordo da van a caminho de Maipu e Lujan onde visitaríamos outras três vinícolas. A primeira, Domaine St. Diego, do renomado enólogo Angel Mendoza, foi um dos pontos altos desta viagem.
Ao contrário da grande maioria das visitas, destinadas a turistas, que enfatizam a arquitetura, a modernidade e a tecnologia e ainda oferecem um elaborado almoço conduzido por um grande Chef, esta pequena vinícola, estritamente familiar, conduz os visitantes unicamente por seus vinhedos, todos localizados dentro da propriedade de apenas 3,3 hectares. Cada metro quadrado está ocupado, seja pelas parreiras e oliveiras (produzem azeite também), pela bodega ou pela casa da família. Só por isto a visita já toma um caráter único.
Quem nos acompanhou foi Laura, filha do proprietário, que não poupou informações e nem deixou pergunta sem resposta. Como não dispõem de muito espaço, empregam técnicas de plantio ousadas, como a “espaldeira dupla” que utiliza duas alturas diferentes para as plantas, dobrando a capacidade do espaço disponível e exigindo, em compensação, o dobro de trabalho para manter e colher (são duas colheitas – as uvas amadurecem em diferentes períodos) ou a condução em “Globelet” ou arbusto, em busca de sabores e aromas únicos para seus vinhos. Até as suaves encostas que cercam a propriedade estão plantadas, nada é desperdiçado.
Mais importante que a utilização racional do solo, a otimização do uso da água, rigidamente controlada neste distrito de Lulunta, é fundamental. Aqui não há água de subsolo. Tudo que conseguem vem do degelo dos Andes distribuído através de um sistema de diques, canais e comportas, criados pelos índios Huarpes que aprenderam a técnica com os Incas.
Atualmente a distribuição é controlada por um “Tomero”, pessoa encarregada de alimentar os diversos canais de distribuição e operar as comportas de cada consumidor de acordo com um contrato de fornecimento muito simples: paga-se por um determinado número de horas, por período. Se precisarem de mais água devem esperar pela próxima data. Quase uma dosagem “homeopática”. Laura nos mostrou a comporta. Difícil imaginar que com tão pouca água consigam produzir vinhos estupendos.
Angel Mendoza, proprietário e enólogo tem como filosofia a ideia de ‘colher o vinho’ em lugar de produzi-lo. Acredita que deveria se dar maior importância às videiras, obtendo-se um bom vinho no terreno em vez de corrigir os erros na cantina. Para comprovar esta máxima, somos convidados para a degustação dos seus produtos, que acontece na casa da família. Nada de salas especiais com iluminação estudada e outros requisitos sofisticados e mercadológicos. Apenas uma varanda envidraçada, com vista para os vinhedos, amplas mesas e cadeiras plásticas, toalhas brancas cobertas de plástico transparente é tudo o que precisam para, neste momento, nos encantar com seus vinhos e azeite. Simplicidade é o segredo!
Começamos com o bom azeite Almazara, obtido com a azeitona Arauco, seguido do quase exclusivo espumante Brut Rosé Elea. Aprovação incondicional.
O vinho seguinte, Paradigma, foi uma surpresa para todos. Elaborado a partir das uvas plantadas como arbustos, o que permite uma maturação diferente. Um formidável corte de Malbec, Cabernet Franc e Cabernet Sauvignon que não passa por madeira. Eu diria que “nem precisa”!
Se houve, nesta viagem, um vinho que nos intrigou, foi este. Aromas e sabores deliciosos que poderiam confundir até mesmo um bom enófilo. O seu nome decorre disto, um verdadeiro paradigma. Por que recorrer a técnicas mirabolantes ou desconhecidas quando tudo que é necessário para obter um grande vinho é olhar para a terra. Um verdadeiro vinho de terroir que derruba, sem piedade, qualquer outra teoria. Esta é uma das razões, pelas quais, Angel Mendoza é respeitado entre seus pares. Espetacular.
Os dois outros vinhos degustados, Pura Sangre e Pura Sangre Nueve Lunas, também eram fora de série, mas não conseguiram nos fazer esquecer o intrigante Paradigma.
Quase ao final da prova de vinhos recebemos a simpática e esfuziante visita de Angel. Encantou a todos com sua simplicidade e franqueza desconcertante. Teve a delicadeza de elogiar e recomendar que consumíssemos mais os nossos próprios vinhos, principalmente os de Santa Catarina, Santana do Livramento e Campanha Gaúcha. Ganhou uma legião de fãs com direito a fotos e autógrafos!
Esta vinícola tem uma interessante característica: seus produtos são comercializados unicamente “in loco”. Não tem representantes comerciais nem importadores. Se alguém quiser revendê-los tem que comprar lá primeiro. Com isto, a nossa van saiu carregada…
Nossa próxima parada foi na Bodega Sin Fin, um projeto inovador segundo a nossa guia, Maria José. Por termos passado da hora prevista, ficamos apreciando a paisagem ao redor, aguardando o fim da visita de outro grupo. Uma empresa relativamente pequena e pouco conhecida, mas tinha um Ás escondido na manga: o importante não estava ao alcance dos olhos…
Ao ingressar no prédio da foto, somos apresentados a uma pequena história da família e da empresa que, por longos anos, se dedicou ao cultivo de uvas e depois da produção de vinhos a granel que são revendidos a outras vinícolas. Só muito recentemente entraram para o segmento dos vinhos próprios.
O tema foi exposto e a pergunta veio rapidamente: quem compra o vinho a granel? A resposta pegou todos no “contrapé”: principalmente vinícolas francesas… Nosso anfitrião recomendou que olhássemos com muita atenção os contra-rótulos de alguns vinhos em busca de uma informação como “produzido por: 1234567890”, em letrinhas muito miúdas. Esta seria uma indicação que o vinho, naquela garrafa, teria outra origem.
Interessante; vinhos argentinos “en bouteille”!
Embarcamos em um elevador para acessar o subsolo e descobrir mais surpresas escondidas. Ao abrir a porta nos deparamos com um ambiente de raro bom gosto e muito aconchegante. Estávamos sob a área de produção, onde criaram um espaço cultural que recebe shows, peças de teatro ou exposições de arte, uma loja de vinhos e de decoração de alto nível, a simpática sala de degustação e uma microssala de barricas onde estava toda a produção.
A sequência de degustação foi bem tradicional iniciando com um espumante, seguido de 1 branco e de alguns tintos. Todos corretos. O ponto alto ficou com o Sauvignon Blanc que apresentou um estilo totalmente “velho mundo”, sendo o vinho que mais agradou a todos.
Fizemos mais uma preciosa descoberta: quais os rótulos que devemos ficar mais atentos.
Uma boa visita, mas sem fortes emoções que estavam reservadas para o premiado almoço na Melipal, conduzido pelo Chef Lucas Bustos, reconhecido como um especialista em harmonizações. Vejam o cardápio de 5 passos:
1º – Terrina de frango e figos secos ao sol, com geleia de marmelo;
– vinho Ikela Merlot;
2º – Crocantes de beterrabas com pesto de tomates secos e “tartar” de carne bovina;
– vinho Ikela Cabernet Sauvignon;
3º – Creme de Lentilhas e “funghi” de pinheiro, servida sobre panceta defumada e croutons;
– vinho Melipal Malbec (100% Malbec com 12 meses em barricas de carvalho francês);
4º – Medalhão de Filé, purê de batatas de Ugarteche (uma localidade), vegetais da época e Chimi Churry de tomates assados;
– vinho Melipal Nazarenas Vineyard Malbec (100% Malbec do vinhedo Nazarenas, plantado em 1923 e 18 meses em barricas de carvalho francês);
5º – Trufa de chocolate amargo e Amaranto, frutas grelhadas e molho de laranja;
– vinho Melipal Malbec Colheita tardia.
A melhor descrição que posso dar a este almoço é: “uivos diversos”!
O Crocante de Beterrabas foi uma unanimidade: delicioso!
Um ambiente maravilhoso, pratos saborosos com apresentação primorosa e vinhos de alto nível. Ficamos no restaurante até quase o fim de tarde, aproveitando o belo visual e o clima ameno. Quase nos expulsaram…
Dica da Semana: um dos bons vinhos servidos neste almoço.
Melipal Malbec
Melipal é o nome da constelação Cruzeiro do Sul no idioma dos Huarpes. Apresenta coloração vermelho rubi com reflexos violeta.
No olfato mostra aromas intensos de ameixas, cerejas pretas, frutos e nozes. No palato percebe-se frutos vermelhos e especiarias com taninos firmes e persistentes.
Harmoniza com carnes vermelhas, lombo de porco e queijos curados.
91 pontos de Robert Parker